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  • Foto do escritorAldigital - Educação

DEPOIS DO “NATIVO DIGITAL”, SURGE O “CRETINO DIGITAL”


O ser humano é gregário, prefere viver acompanhado de outros seres humanos. Na verdade, em várias situações precisa viver com outros seres humanos. Entre essas situações estão as necessidades afetivas: gostamos de ser aceitos, admirados, aprovados, confirmados por outros do nosso bando.



Talvez por isso, nós tenhamos nos identificado tanto com as falas do neurocientista e pesquisador Michel Desmurget, diretor de pesquisa para o seu estado do Instituto Nacional da Saúde e Pesquisa Médica da França, em entrevistas que concedeu à Ima Sanchis, para o La Vanguardia (19.09.2020), e para Irene Hernández Velasco, para a BBC News Mundo (30.10.2020): porque confirmam o que temos nos esforçado para mostrar aos pais e empresários de educação no Brasil.


E nos parece muito oportuno comentar a respeito dessas constatações científicas quando no dia 30 de novembro se comemora o Dia da Segurança da Informação, pois a questão da exposição de crianças e jovens aos dispositivos eletrônicos envolve graves riscos.

Crédito: Michel Desmurget


O neurocientista usa termos que podem parecer exageradamente fortes:


cretinos digitais, veneno, loucura, orgia, fantasia, extravagante, entretenimento tonto... mas é preciso lembrar que ele vem pesquisando e estudando os efeitos das telas em crianças e adolescentes há mais de duas décadas, nas quais tem procurado chamar a atenção para a gravidade do assunto, quase sem sucesso (o que também nos conforta: não estamos sozinhos nesse mar de desinformação com cara de verdade). Por isso, o título da matéria no La Vanguardia é “O Cientista Irritado”.


A própria jornalista inicia dizendo que “há anos que assistimos a um fenômeno curioso: estudos científicos sérios passam por alarmistas e damos crédito aos estudos sem qualidade”. Isso acontece em todos os setores.


Na BBC, o título é: 'Geração digital': por que, pela 1ª vez, filhos têm QI inferior ao dos pais. Essa informação é baseada em dados concretos e conclusivos, publicados no mais recente livro de Michel Desmurget, sobre como os dispositivos digitais estão afetando séria e negativamente o desenvolvimento do sistema nervoso de crianças e jovens. O livro (ainda sem tradução para o português) se chama A Fábrica de Cretinos Digitais. Talvez, finalmente, com esse dado, as pessoas comecem a prestar atenção.


Como profissional da área de saúde, ele usa, em analogia, o termo cretino no sentido técnico: aquele que sofre de cretinismo, ou seja, que carregue uma perturbação patológica que impede o desenvolvimento físico ou mental.


A questão é que em muitos países desenvolvidos (Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda, França etc.), a tendência de aumento gradual de QI, geração após geração, se inverte e os millennials são a primeira geração a ter um QI médio menor que a geração anterior. E o pesquisador não tem dúvidas: as telas possuem uma responsabilidade incontestável nesse fenômeno. Para ele – assim como para nós da AlDigital – a superioridade do nativo digital é fantasia, mito (como já abordamos em “A Mentira do Nativo Digital,em julho/2019):


“Toda a pesquisa destaca a baixa capacidade de nossas crianças para processar, compreender e sintetizar a informação presente na rede; (...)


mesmo que o tempo de tela de uma criança não seja o único culpado, isso tem um efeito significativo em seu QI. Vários estudos têm mostrado que quando o uso de televisão ou videogame aumenta, o QI e o desenvolvimento cognitivo diminuem.” Some-se a isso tablets e celulares.


O tempo de tela que os pais permitem está muito acima do recomendado pelos médicos. Por exemplo: para crianças de seis anos de idade, a recomendação é de, no máximo, uma hora por dia. Todos sabemos que crianças muito mais novas que isso são expostas ao quíntuplo ou sêxtuplo disso. Na verdade, nossos bebês já usam muito mais que uma hora, diariamente.

A questão é que nosso estilo de vida conta com as telas como babás, para que possamos nos desincumbir de nossas outras tarefas diárias, seja nosso trabalho profissional ou doméstico. Mas tudo tem um preço... Usar telas como babás parece uma solução tão genial, que, sequer, somos capazes de encontrar ou enxergar alternativas.


A exposição exagerada a tela diminui a qualidade e a quantidade das interações intrafamiliares, essenciais para o desenvolvimento da linguagem e do emocional; diminui o tempo dedicado a outras atividades mais enriquecedoras, como lição de casa, música, arte, leitura etc.; perturba o sono, que é quantitativamente reduzido e qualitativamente degradado; superestimula a atenção, levando a distúrbios de concentração, aprendizagem e impulsividade; subestimula o intelecto, impedindo o cérebro de desenvolver todo o seu potencial; e causa sedentarismo excessivo que, além do desenvolvimento corporal, influencia negativamente a maturação cerebral. Tudo isso já está claramente identificado em pesquisas em várias partes do mundo. E, é bom destacar: nem entramos na questão do conteúdo consumido pelos bebês, crianças e jovens.


É comum ouvir que os nativos digitais sabem "de maneira diferente". A ideia é que embora apresentem déficits linguísticos, de atenção e de conhecimento, são muito bons em "outras coisas". Segundo Desmurget, a questão está na definição dessas "outras coisas", pois vários estudos indicam que, ao contrário das crenças comuns, eles não são muito bons com computadores. Um relatório da União Europeia explica que a baixa competência digital impede a adoção de tecnologias educacionais nas escolas. Outros estudos também indicam que eles não são muito eficientes no processamento e entendimento da vasta quantidade de informações disponíveis na internet.


Então, no que eles são bons? São obviamente bons para usar aplicativos digitais básicos, como redes sociais, comprar produtos online, baixar músicas e filmes...


Reparem: são todas habilidades de usuário e nada mais que isso. E ficamos com a sensação de que eles são excepcionalmente inteligentes. Conforme já tivemos oportunidade de dizer, essa sensação vem da comparação conosco mesmos, que sentimos dificuldade em dominar os aplicativos. Mas isso se deve ao pouco tempo que dedicamos a eles. Se ficarmos quatro, seis ou, até, oito horas diárias no celular, também vamos dominar a operação dos aplicativos. Então, a diferença é apenas o número de horas de dedicação. Tire a prova, se tem dúvidas: esqueça todo o resto de sua vida e mergulhe nos aplicativos do seu celular quatro horas por dia, durante uma semana, e veja como seu desempenho de usuário vai dar um salto.


Para o neurocientista, essas crianças se assemelham às descritas por Aldous Huxley em seu famoso romance distópico Admirável Mundo Novo: atordoadas por entretenimento bobo, privadas de linguagem, incapazes de refletir sobre o mundo, mas felizes com sua sina.


Quanto aos estudos que afirmam que os videogames melhoram o rendimento acadêmico, Michel Desmurget aponta que eles são publicados em revistas acadêmicas de terceira classe e baseiam-se unanimemente em valores atípicos e/ou metodologias defeituosas. Mas, apesar disto, recebem uma cobertura midiática incrível.


Aí está o problema, pois a lógica é puramente econômica. Não importa o impacto na saúde, sempre que entre dinheiro.


Já vimos isso antes várias vezes: tabaco, remédios, alimentação, pesticidas... a lista é longa.

O neurocientista bem aponta que a tecnologia digital parece ser uma necessidade orçamentária, mas seria desejável que isso fosse dito com clareza, sem tentar fazer passar esta renúncia educacional como progresso educacional. É preciso lembrar que professores saem mais caros (assim como babás de verdade...).


A informação dada aos pais é parcial e tendenciosa.


A grande mídia está repleta de afirmações infundadas, propaganda enganosa e informações imprecisas. A discrepância entre o conteúdo da mídia e a realidade científica costuma ser perturbadora, se não enfurecedora.


Esse comportamento da mídia não surpreendente, porque a indústria digital gera bilhões de dólares em lucros a cada ano. E, obviamente, crianças e adolescentes são um recurso muito lucrativo. “E para empresas que valem bilhões de dólares, é fácil encontrar cientistas complacentes e lobistas dedicados. Indústrias contratam especialistas para dizer que uso dos dispositivos é bom.


Recentemente, uma psicóloga, supostamente especialista em videogames, explicou em vários meios de comunicação que esses jogos têm efeitos positivos, que não devem ser demonizados, que não jogá-los pode ser até uma desvantagem para o futuro de uma criança, que os jogos mais violentos podem ter ações terapêuticas e ser capaz de aplacar a raiva dos jogadores, etc.


O problema é que nenhum dos jornalistas que entrevistaram essa ‘especialista’ mencionou que ela trabalhava para a indústria de videogames. E este é apenas um exemplo entre muitos descritos em meu livro.”


Se temos a impressão de que os videogames são bons, é porque a mídia serve à indústria.


Sobre a ideia de que os videogames ajudam a obter melhores resultados acadêmicos, Desmurget responde: “Digo com franqueza: isso é um absurdo. Essa ideia é uma verdadeira obra-prima de propaganda. Baseia-se principalmente em alguns estudos isolados com dados imprecisos, que são publicados em periódicos secundários, pois muitas vezes se contradizem.”


E é nesse ponto da entrevista que o pesquisador utiliza a expressão orgia digital, para afirmar que ela está arrasando “as bases mais essenciais de nossa humanidade: a linguagem, a concentração, a capacidade de memória, a criatividade, a cultura (no sentido de um corpo de conhecimento que permite compreender e pensar o mundo).

O pesquisador ressalta, no entanto, que não são todas as crianças que estão sujeitas a essa exposição desregrada:


Os altos executivos das indústrias digitais têm especial cuidado em proteger seus filhos dos produtos que nos vendem.


Uma imagem chocante consta de outro livro de Michel Desmurget: “Lobotomia televisiva: a verdade científica sobre os efeitos da televisão”, como se vê abaixo. Ela é oriunda de um estudo feito na Alemanha, conduzido pelos pediatras Peter Winterstein e Robert J. Jungwirth, nos anos de 2005-2006, que analisou desenhos de 1.859 crianças em idade pré-escolar, utilizando critérios apropriados à idade. A solicitação feita às crianças foi que desenhassem um homem. Os resultados mostram clara correlação entre o elevado consumo televisivo, por um lado, e os déficits de percepção visual ou de percepção quantitativa, por outro. Os primeiros desenhos foram feitos por crianças que assistiam até uma hora de televisão por dia; os segundos, por crianças com mais de três horas de televisão por dia.



Gravura contida no livro "Lobotomia televisiva: a verdade científica sobre os efeitos da televisão", de Michel Desmurget, p. 136, referindo-se ao estudo feito na Alemanha (WINTERSTEIN P. et al., Medienkonsum und passivrauchen bei vorschulkindern; Kinder und ]ugendarzt, n° 37, 2006, p. 205 et passim.).


É claro que as consequências individuais da diminuição do QI, como um termômetro do desenvolvimento das gerações nativas digitais terá impactos significativos da perspectiva coletiva e social, como temos procurado chamar atenção.


Desmurget prevê “um aumento das desigualdades sociais e uma divisão progressiva da nossa sociedade entre uma minoria de crianças preservadas desta ‘orgia digital’ — os chamados alfas do livro de Huxley —, que possuirão, através da cultura e da linguagem, todas as ferramentas necessárias pensar e refletir sobre o mundo, e uma maioria de crianças com ferramentas cognitivas e culturais limitadas — os chamados gamas na mesma obra —, incapazes de compreender o mundo e agir como cidadãos cultos. Os alfas frequentarão escolas particulares caras com professores humanos "reais". Já os gamas irão para escolas públicas virtuais com suporte humano limitado, onde serão alimentados com uma pseudo-linguagem semelhante à "novilíngua" de (George) Orwell (em 1984) e aprenderão as habilidades básicas de técnicos de médio ou baixo nível (projeções econômicas dizem que esses tipos de empregos serão super-representados na força de trabalho de amanhã).


Um mundo triste em que, como disse o sociólogo Neil Postman, eles vão se divertir até a morte. Um mundo no qual, através do acesso constante e debilitante ao entretenimento, eles aprenderão a amar sua servidão.” O pesquisador pede desculpas por não ser mais otimista. E ainda constata: “Quanto mais os países investem em tecnologias da informação e comunicação(TICs) aplicadas à educação, mais baixo o rendimento dos estudantes.


Quanto mais tempo os alunos passam com estas tecnologias, mais pioram suas qualificações.”

E a isso ainda podemos acrescentar o grande risco da concentração de informação em poucas mãos, como já alertava Carl Sagan, em 1996, no seu livro Um mundo assombrado por demônios. Essa tem sido nossa missão: minimizar esse impacto, ajudando as escolas a implantarem um robusto ensino de tecnologia, combatendo a superficialidade.


Se nos ressentimos da enorme concentração de renda na atualidade, a concentração de informação será muito mais severa e impactante não só nos aspectos práticos da nossa vida, mas também em nossa autonomia, liberdade e dignidade.


Basta assistir ao documentário O Dilema das Redes Sociais, produção original da Netflix.

Por isso concordamos com Desmurget quando afirma que “ninguém diz que a ‘revolução digital’ é ruim e deve ser interrompida. Os alunos devem aprender habilidades e ferramentas básicas de informática? Claro. Da mesma forma, pode a tecnologia digital ser uma ferramenta relevante no arsenal pedagógico dos professores? Claro, se faz parte de um projeto educacional estruturado e se o uso de um determinado software promove efetivamente a transmissão do conhecimento.”


E ressalva que


o que vai fazer a diferença “não são telas, mas pessoas e ação. Crianças precisam de palavras, sorrisos, abraços. Precisam se entediar, sonhar, brincar, imaginar, correr, tocar, manipular, que sejam lidos contos para elas.


Olhar o mundo que os cerca, interagir. No coração destas necessidades, a tela é uma corrente de gelo que congela o desenvolvimento.”


Por isso, em matéria de uso e ensino de tecnologia, está cada vez mais urgente separar o joio do trigo.


Já passou da hora de sermos mais maduros e realistas em relação a isso. Chegou o momento de escolhermos entre o fácil e o certo.



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